- Atualizado há 14 horas
“Sendo chegado à Minha Real Presença uma muito atendível representação sobre os danos a que está exposta a saúde pública, por se enterrarem os cadáveres nas igrejas que ficam dentro das cidades populosas dos Meus Domínios Ultramarinos, visto que os vapores que de si exalam os mesmos cadáveres, impregnando a atmosfera, vêm a ser a causa de que os vivos respirem um ar corrupto e infeccionado, e que por isso estejam sujeitos […] a moléstias epidêmicas e perigosas.”
O trecho acima é de uma carta régia de janeiro de 1801, encaminhada pelo príncipe-regente de Portugal, Dom João VI, ao vice-rei e capitão-general do Estado do Brasil, Dom Fernando. Com a justificativa de estar preocupado com a “preservação da vida de Meus fiéis vassalos”, ele proibiu “que dentro dos templos se continue a dar sepultura aos cadáveres logo que estiverem construídos os mencionados cemitérios”. Na Europa, o discurso higienista se propagava desde a década de 1740. Já no Brasil, a população resistiu à criação dos chamados cemitérios extramuros.
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Fundado em dezembro de 1854, o Cemitério Municipal São Francisco de Paula, no bairro São Francisco, completou 170 anos. Ele é o cemitério público mais antigo de Curitiba e um dos mais antigos do país na modalidade de sepultamento extramuros, ou seja, fora das igrejas. A sua construção, entretanto, começou a ser discutida pela Câmara Municipal de Curitiba (CMC) em 1829. Visando à salvação da alma, o costume era sepultar os mortos em solo sagrado, dentro dos templos religiosos e no terreno ao redor deles.
A Europa já discutia, desde a década de 1740, o distanciamento entre mortos e vivos, com foco na saúde da população. Acreditava-se que os gases e líquidos gerados no processo de decomposição fossem os responsáveis por doenças e, consequentemente, epidemias. “Assim como as cidades cresciam, aumentava o número de sepultamentos e uma maior sensibilidade olfativa começou a despontar”, pontua a pesquisadora cemiterial Clarissa Grassi no livro “Memento Mortuorum – Inventário do Cemitério Municipal São Francisco de Paula”.
Apesar da carta régia de Dom João VI ordenar o fim dos sepultamentos nas igrejas, em 1801, houve um hiato para que as províncias brasileiras seguissem a ordem real e adotassem, efetivamente, os cemitérios extramuros. Já no Brasil Império, novas resoluções tentaram acabar com os sepultamentos dentro das igrejas, que eram feitos tanto no piso quanto nas paredes dos templos, do terreno ao redor deles.
Primeiro regimento das câmaras municipais das vilas e cidades do país, a lei de 1º de outubro de 1828, editada por Dom Pedro I, regulava as atribuições dos vereadores. O título 3, referente às “posturas policiais”, atribuiu aos vereadores a função de criar posturas sobre “o estabelecimento de cemitérios fora do recinto dos templos”. O mesmo artigo delegou a eles o papel de estabelecer posturas para regular outras questões pertinentes à saúde, como o esgotamento de “pântanos e águas infectas” e o asseio dos matadouros de animais.
Os cemitérios públicos extramuros são criados a partir da década de 1830. O precursor foi batizado, em Salvador, com o nome de Campo Santo. A resistência ao sepultamento fora das igrejas, solo considerado sagrado, deu origem à revolta popular conhecida como Cemiterada, em 1836. O Cemitério Campo Santo foi depredado pela população.
Em Curitiba, os sepultamentos eram feitos nas igrejas da Matriz, do Rosário e da Ordem Terceira de São Francisco de Chagas, além da Capela São Francisco de Paula (onde estão, hoje, as Ruínas de São Francisco, na praça João Cândido).. As paróquias das freguesias de Curitiba, hoje cidades da Região Metropolitana, também recebiam sepultamentos. “Tanto nas freguesias quanto nas capelas existiam estruturas para receber sepultamentos, em sua maioria na modalidade de cemitérios”, explica a pesquisadora Clarissa Grassi, que é diretora do Departamento de Serviços Especiais da Prefeitura Municipal.
A Câmara de Curitiba começou a discutir a construção do cemitério público em 1829. Na sessão de 12 de setembro de 1829, durante o debate das posturas da vila, o tema foi levantado pelo vereador Miguel Marques dos Santos, conforme a jornalista Michelle Stival, da Diretoria de Comunicação da CMC, já relatou na reportagem “A vida e a morte na história de Curitiba”, em 2010. Marques chamou a atenção para a necessidade de se erigir um “cemitério nesta vila, a fim de não se enterrarem corpos nos templos da mesma, para se evitarem os males que disto resultam”. Os legisladores decidiram que a comissão que havia sido criada para estabelecer as posturas municipais emitiria um parecer sobre a questão.
Além de atender à lei de 1828, o debate sobre a construção do cemitério público extramuros chegou à Câmara de Curitiba em meio a uma epidemia de varíola, doença à época chamada de “bexiga”. Há registros, desde 1818, que os “bexiguentos” deveriam ser sepultados no Cemitério Sítio do Mato, e não nas igrejas. Em 1838, os camaristas chegaram a mediar um entrave entre o professor de primeiras letras e o vigário da vila, por “ter se dado, no átrio de S. Francisco de Paula, sepultura a dois cadáveres que morreram de bexigas”. Denunciando os sepultamentos das supostas vítimas da varíola na igreja, que também recebia as aulas, o professor informou à Câmara ter suspenso as atividades por três dias. Ele também pediu que as aulas fossem transferidas para a Igreja Matriz.
“Deliberou-se que se oficie o vigário requisitando a Matriz e advertindo-lhe que não deixe mais enterrar-se no mencionado átrio cadáveres de pessoas que morreram da dita enfermidade, e sim no Cemitério do Sítio do Mato”, registra a ata da sessão de 27 de maio de 1838. Em resposta aos vereadores, apresentada na sessão seguinte, o vigário acata o uso da Matriz e se desculpa “ sobre o enterramento de alguns bexiguentos em São Francisco de Paula e assevera que não se continuará”. Além disso, recomenda ao professor que oriente seus alunos para que nenhum deles “se atreva a praticar qualquer ação menos decorosa ao lugar”.
A pesquisadora cemiterial Clarissa Grassi afirma que o Sítio do Mato situava-se onde hoje fica o bairro Mercês. Entretanto, a localização exata é desconhecida. O bispo diocesano Dom Lino Deodato Rodrigues de Carvalho registrou, no Livro Tombo da Matriz de 1882, que o cemitério para receber os sepultamentos de “variolosos” estava “a cerca de meia légua a leste de Curitiba” e que foi bento, em 1º de julho de julho de 1815, pelo então vigário José Barboza de Brito.
“Fazendo-se outrora os enterramentos dentro das igrejas, e havendo grandes inconvenientes em serem nelas sepultados os variolosos, para sepultura destes, foram eretos, com o de Sítio do Mato, três ou quatro cemitérios, sobre os quais deixo de falar por me faltarem ainda as necessárias informações”, acrescenta o Livro Tombo. O último registro de sepultamento no local é de 29 de janeiro de 1887, da menina Antônia, de 10 meses de idade, filha de uma escrava.
Apesar do alerta do vereador Marques, feito na sessão de 12 de setembro de 1829, a redação final das posturas municipais foi aprovada, no fim daquele mês, sem a votação do parecer sobre o cemitério público da vila de Curitiba. As posturas, na sequência, ainda precisariam ser confirmadas pela Assembleia Provincial de São Paulo, a quem a Câmara Municipal se submeteu até dezembro de 1853, com a Emancipação da Província do Paraná.
As obras do cemitério público voltam a ser discutidas em 1830. “Entrou em discussão a indicação do senhor Marques a respeito do cemitério, adiada da passada sessão, e sendo presente o reverendo pároco desta vila, convidado por esta Câmara para com ele consultar o meio de fazer o dito cemitério e ouvindo a Câmara o mesmo sobre este objeto, depois de uma aturada [longa] discussão, ficou adiada [a proposta] a requerimento do senhor Bandeira [vereador Joaquim José Bandeira]”, registra a ata da sessão de 22 de abril daquele ano.
Na sessão de 16 de setembro de 1831, os vereadores de Curitiba acusaram o recebimento de uma circular do novo presidente da Província de São Paulo, Manuel Theodoro de Araújo Azambuja, datada de 1º de julho, “recomendando a factura de estradas públicas e cemitérios”. No ano seguinte, a ata das sessões dos dias 24 e 25 de outubro indicam o debate de um ofício do vigário da Matriz sobre o estado “ruidoso” da principal igreja da vila, debate que também era travado há bastante tempo, e da “necessidade que há de cemitério”. O despacho da representação feita pelo sacerdote à Assembleia da Província de São Paulo é aprovado somente na sessão de 6 de de fevereiro de 1835.
Em 3 de fevereiro de 1836, as atas da Câmara de Curitiba registram que era aguardada a “resolução da Assembleia Provincial sobre o orçamento que lhe enviou” para o cemitério, “onde incluiu a quantia que se julgou necessária para tal obra, e, caso não venha, se esforçará pelas suas rendas”. Na sessão de 20 de abril, os vereadores criaram uma nova comissão especial para discutir “o lugar e a maneira da construção” do cemitério público. A discussão tem continuidade nos meses seguintes. São requeridas, por exemplo, informações e estatísticas dos vigários da Matriz, de São José dos Pinhais e de Palmeira.
Para o “capital” para a construção do cemitério ser aprovado, a Câmara precisava, primeiramente, estabelecer uma postura municipal. Na sessão de 15 de fevereiro de 1838, lê-se ofício da Assembleia Provincial de que “a postura proposta por esta Câmara na substituição do imposto sobre o sal ofende os princípios consagrados” no ato adicional à Constituição do Império, lei de 1834, e que “por isso não foi aprovada, devendo a Câmara propor outros meios de ocorrer as despesas com o cemitério”. “Entrando em discussão, ficou a Câmara inteirada, visto já ter proposto nova Postura ao mesmo respeito”, acrescentam as atas da sessão, sem esclarecer qual teria sido a nova ideia para obter recursos para as obras da necrópole.
“Que fique desde já a Igreja Matriz declarada em conserto”, indicam as atas da sessão de 30 de abril de 1839. As funções religiosas, a exemplo das missas, foram proibidas, já que o estado da igreja era “ruidoso” e havia o temor que o prédio desabasse. No entanto, “visto não haver cemitério”, a Câmara de Curitiba determina que poderiam ser mantidos os sepultamentos no corpo do templo, “sem que ali se faça o funeral, mas sim na sacristia ou corredor, onde não há perigo”.
Na sessão de 8 de outubro de 1840, reforça-se “a necessidade que há de um cemitério nesta vila” e “as dificuldades e embaraços em que se tem achado esta Câmara desde a sua criação, para conseguir tão útil fim”. Citando que em novembro de 1836 a comissão especial já havia demarcado um terreno “atrás da Igreja de São Francisco, que apresenta a facilidade de já ter capela”. “Resolveu a Câmara que se convide primeiramente por edital aos moradores que quiserem fazer carneiros [túmulos]”, continua a deliberação, que ainda estabeleceu o dia 13 como o prazo final para que os interessados se manifestassem. No fim daquele mês, é aprovado “o plano, condições e planta da obra do cemitério”, submetidos à análise dos tesoureiros das irmandades das igrejas.
O projeto de 1840 também não avançou. Conforme o pesquisador Francisco Negrão, responsável por transcrever mais de 60 volumes de atas e outros documentos da Câmara de Curitiba, o terreno destinado ao cemitério ficava no Alto São Francisco, próximo à igreja. “Chegou-se, contudo, a construir-se alguns carneiros, onde foram enterradas algumas pessoas da Irmandade de S. Francisco de Paula”, apontou.
Em 1846, a Câmara Municipal criou uma nova comissão para discutir as obras do cemitério. Em dezembro de 1848, as irmandades são convocadas para fazer “catacumbas na parede do corredor da Igreja Matriz, para servirem enquanto não houver cemitério”. Em abril de 1850, a Câmara de Curitiba sinaliza ter “um saldo suficiente” para as obras. No entanto, é designada uma comissão, mais uma vez, “para marcar um lugar e orçar a construção do cemitério nesta cidade”. As atas revelam que o plano foi aprovado, no fim do mesmo mês, sem entrar em detalhes. Um edital para interessados em arrematar as obras chega a ser publicado, mas não há interessados.
Em junho de 1850, em sessão extraordinária, a Câmara resolveu designar dois vereadores para comprar os materiais necessários para a obra. Em janeiro de 1851, registou-se a aquisição de “400 carradas de pedras para o começo do cemitério desta cidade”. No mês de agosto, entretanto, “visto que não é possível achar-se pedra como a Câmara deliberou senão por excessivo preço”, os camaristas determinam “que se lance mão da pedra que existe em S. Francisco de Paula para conclusão da calçada [da rua da Ladeira], visto que não se dá começo já no cemitério”.
Ao longo de 1852, a Câmara de Curitiba manteve as discussões sobre a construção do cemitério público da vila, mas a efetivação das obras esbarra na falta de recursos. Na sessão 19 de junho de 1852, por exemplo, foi lida portaria da Assembleia Provincial de São Paulo “comunicando ter expedido ordem à Alfândega de Paranaguá para ser paga a esta Câmara a quantia de 1.186$147, produto líquido do imposto de aguardentes, declarando que não pode ter lugar a aplicação desta quantia para a fatura do cemitério sem uma nova autorização” dos deputados provinciais.
Na lei 13/1852, que estabeleceu os orçamentos das câmaras municipais da Província de São Paulo para 1853, os camaristas de Curitiba têm autorizada uma despesa com “obras públicas em geral, inclusive 1.387$352 para a obra do cemitério”. O valor corresponde a mais de um terço das despesas totais estimadas para a cidade naquele ano.
“Sob proposta do senhor Paula Guimarães resolveu-se tratar na próxima sessão ordinária, com todo o afinco, da obra do cemitério desta cidade, a fim de se despender a quantia marcada para este fim”, registram as atas do dia 11 de abril de 1853. Em 11 julho do mesmo ano, a Câmara de Curitiba decidiu “nomear uma comissão adjunta, com o administrador do cemitério, para examinar as deliberações a respeito e conhecerem se o lugar marcado tem a necessária extensão em relação à população” da cidade.
As atas da sessão do dia 15 de julho de 1853 indicam que a comissão e o inspetor nomeado pelo Governo de São Paulo deveriam demarcar “a extensão e planta” do projeto do cemitério público de Curitiba. “Deliberou a Câmara que se desse começo à mesma obra debaixo dos riscos e plano concordado entre a comissão e o diretor, começando o mesmo diretor, desde já, principiando com a compra dos materiais”, acrescenta a deliberação dos camaristas.
A construção do cemitério só avançou com a criação da Província do Paraná, em 19 de dezembro de 1853. Dias depois da Emancipação, o primeiro presidente da Província, Zacarias Góis de Vasconcelos, apresenta uma série de portarias aos vereadores. Uma delas, lida na sessão do dia 22, informa que o vereador Benedicto Enéas de Paula ficaria responsável pela construção do cemitério e que a “quantia que para esse fim existe em poder da Câmara, […] pelo orçamento que rege”, de um conto e noventa mil réis, deveria ser entregue ao novo encarregado.
Precursor da imprensa no Paraná, o jornal “Dezenove de Dezembro” comemorou, na edição de 1º de julho de 1854, o andamento do projeto. “Temos notícia de que se trata atualmente, com todo o empenho, de dar-nos um cemitério público, a fim de cessar por uma vez o péssimo costume dos enterros nas igrejas. O sr. Benedicto Enéas foi o cidadão escolhido pelo governo para encarregar-se da obra, sobre um belo plano apresentado pelo tenente-coronel Beaurepaire, e que será executado debaixo da direção de qualquer um dos engenheiros da província”, informou a publicação.
“O sítio escolhido para o campo santo não podia ser mais azado [oportuno]: um pouco adiante do lugar conhecido pelo nome de Pedreira, sobre o lombo de uma colina, dali se avista a cidade de Curitiba de um lado e do outro o campo, as chácaras, as choças [cabanas] e semeadas por entre os pinheirais […], a perder-se em um vasto horizonte. O campo da morte vai ser um lugar próprio para as meditações graves e profundas sobre Deus e a eternidade, pelo enlevo [tranquilidade] do sítio, pela propriedade da paisagem ”, escreveu, ainda, o jornal.
A placa comemorativa do Cemitério Municipal São Francisco de Paula indica o dia 1º de dezembro de 1854 como a inauguração do local pelo primeiro presidente da Província do Paraná, Zacarias de Góis e Vasconcelos. Contudo, devido à grafia do numeral “1” na placa inaugural, confundindo-se com o “7”, alguns documentos e trabalhos trazem a data incorreta para o evento. O registro oficial de Dom Lino Deodato Rodrigues de Carvalho, no Livro Tombo da Matriz de 1882, confirma que a inauguração ocorreu dia 1º de dezembro de 1854.
“Em 17 de julho de 1854, por ordem do presidente desta Província, Zacarias de Góis de Vasconcelos, a Câmara Municipal de Curitiba entregou a Benedicto Enéas de Paula a quantia de um conto de réis para, sob a direção do engenheiro da Câmara, Emilio Gengembre, fazer o cemitério no lugar designado”, escreveu Dom Lino. “Numa pequena pedra, outrora colocada na soleira do portão e hoje, com o fim de conservá-la, encostada na parede do lado de dentro do cemitério, junto ao portão, à direita de quem entra, lê-se a seguinte inscrição: ‘Foi lançada a 1ª pedra deste cemitério pelo Exmo. Sr. Conselheiro Zacarias de Góis e Vasconcelos, presidente desta Província, no dia 1º de dezembro de 1854’”, continua o Livro Tombo da Matriz.
O bispo diocesano Dom Lino ainda registrou, no Livro Tombo de 1882, que a benção do cemitério foi feita, no mesmo dia de sua inauguração, pelo reverendo vigário Agostinho Machado de Lima. O terreno teria sido doado pelo próprio vigário, mas não existem documentos para comprovar tal hipótese. Um mapa antigo de Curitiba, datado pelo historiador Romário Martins como do ano de 1857, reforça que o cemitério ficava ao lado de uma pedreira, na região por onde passa, hoje, a rua Inácio Lustosa.
“A cerca primitiva era de madeira, a atual, de pedra e cal, foi feita sob a direção do já falecido Francisco de Paula Guimarães, sendo concluída e entregue a 2 de dezembro de 1865”, conclui o registro do Livro Tombo sobre o Cemitério Municipal. A data refere-se à conclusão das obras.
A construção de cemitérios na Província do Paraná foi um dos temas abordados no relatório que Zacarias Góis de Vasconcelos apresentou durante a sessão de abertura da Assembleia Provincial, no dia 15 de julho de 1854. “A religião, não menos que a higiene, opõe-se ao reprovado costume de se enterrarem nos templos cadáveres humanos; mas tal é a força dos hábitos e dos abusos, que às vezes o medo pode fazer inclinar-se a balança em favor da razão e da experiência”, defendeu o presidente.
“Muito melhor é esse estado de coisas do que o que existia nesta cidade. Quando cheguei, os cadáveres eram sepultados no corpo da Matriz, e muitas vezes fragmentos de ossos humanos andaram dispersos aqui e ali”, continuou Vasconcelos no relatório de 1854. “Havia no cofre da Câmara Municipal 1.090$000, produto do imposto aplicado por lei a essa obra; mas nada se havia ainda feito. Mandei, pois, um engenheiro fazer a planta do cemitério, e vai começar-se a obra sob a administração do cidadão Benedicto Enéas de Paula, de cujo patriotismo espero todo zelo no desempenho de tal incumbência. Peço-vos, senhores, que auxilieis a construção dessa indispensável obra.”
No relatório de fevereiro de 1855, Vasconcelos indicou o avanço das obras do cemitério público de Curitiba. “Levantou-se, em situação vantajosamente escolhida, na vizinhança desta cidade, um cemitério temporário, feito de madeira, enquanto o muito mais vasto, de pedra e cal, que o tem de compreender e substituir, e a que no 1º de dezembro deu-se princípio, não se conclui. A obra do cemitério de pedra prossegue regularmente sob a administração do cidadão Benedicto Enéas de Paula, o qual tem correspondido à confiança, que motivou a sua escolha”, assinalou o presidente da Província do Paraná.
O primeiro sepultamento no Cemitério Municipal São Francisco de Paula, ainda chamado de Cemitério Público, foi o da viúva Delphina Antônia de Sampaio, realizado quase dez meses depois de sua inauguração, no dia 30 de setembro de 1855. O Livro de Sepultamentos nº 1 (1855-1882) indica que Deplhina faleceu aos 86 anos de idade, em função de “moléstias internas”.
No mesmo ano, o cemitério recebeu mais 10 sepultamentos, 2 deles de pessoas escravizadas. O 10º sepultamento, no dia 29 de dezembro, foi do menino Lourenço, de 2 anos de idade, morto por “moléstias internas”. O pai da criança é identificado como Benedicto Enéas de Paula. Não se sabe se é o vereador encarregado do início das obras ou um cidadão com o mesmo nome.
“Tais inumações não se deram por acaso, pois ocorreram exatamente quatro dias após a publicação da postura”, explica a pesquisadora Clarissa Grassi no livro “Memento Mortuorum”. “Ficam absolutamente proibidos os enterramentos dentro das igrejas, devendo d’ora em diante ser feitos em cemitérios extramuros”, cita a postura a que a obra se refere, estabelecida pelo presidente em exercício da Província do Paraná, Henrique de Beaurepaire Rohan, e publicada pela imprensa em 26 de setembro de 1855. O temor era de uma nova epidemia de varíola, que já assolava outras partes do Império. Curitiba ameaçava, inclusive, multar quem não tivesse se vacinado e vacinado seus filhos e escravos contra a doença.
Apesar da publicação da postura, dois sepultamentos ainda foram realizados na Igreja Matriz, em 1855. Além do Cemitério Público, como o São Francisco de Paula ainda era chamado, e o do Sítio do Mato, os sepultamentos continuaram a ser feitos nos cemitérios pertencentes à paróquia de Curitiba, mas distantes do perímetro urbano, nas freguesias que hoje são municípios da Região Metropolitana.
Até a conclusão do primeiro cemitério público municipal de Curitiba, em dezembro de 1865, a necessidade de se concluir as obras e o aporte de recursos são mencionados em atas da Câmara Municipal, jornais e outros documentos históricos, como os relatórios dos presidentes e vice-presidentes da Província do Paraná. Em março de 1856, o relatório do vice-presidente em exercício, Henrique de Beaurepaire Rohan, pontuou que “a conveniência de se destinar para moradia dos mortos outros lugares, que não sejam o recinto das igrejas, já felizmente não é objeto de questão para o nosso povo; pelo contrário, todos aceitam essa reforma como indispensável para a salubridade pública e conveniente para a decência dos templos”.
“Na generalidade das nossas povoações, há cemitérios, alguns já concluídos, outros em construção. As obras do desta capital estão adiantadas, e, bem que o cerco não esteja completo, já serve para o fim a que é destinado”, completou o vice-presidente em exercício. Em agosto de 1857, por exemplo, o jornal “Dezenove de Dezembro” informa que “o gradil de ferro que faz parte do plano do cemitério” seria enviado do Rio de Janeiro. Apontada como um dos principais problemas do local, a cerca de madeira, “pela qual passavam animais”, só foi substituída em 1865.
No relatório apresentado na sessão de abertura da Assembleia Legislativa em 1866, no dia 15 de fevereiro, o presidente da província, André Augusto de Pádua Fleury, comemora a conclusão das obras. “Ainda que defeituoso em seu plano, pode-se dizer que o cemitério da capital se acha finalmente concluído”, afirma o documento. “Esta obra teve princípio em 1° de dezembro de 1854 e, por falta de operários, parou em setembro de 1857, […] meu antecessor resolveu continuá-la, encarregando por portaria de 31 de maio de 1864 o tenente-coronel Francisco de Paula Guimarães, que por 20 meses administrou-a com perseverança e zelo”, acrescenta.
Além dos recursos dos cofres públicos, as obras receberam o aporte delegado no testamento de Maria Clara do Nascimento. O relatório também indica que, em 1º de novembro de 1865, a área foi novamente benzida pelo “reverendo vigário desta capital”. Apesar da conclusão das obras, seguindo o plano inicial do cemitério público, o espaço recebeu melhoramentos ainda no século 19. No livro “Memento Mortuorum – Inventário do Cemitério Municipal São Francisco de Paula”, a pesquisadora Clarissa Grassi pontua que a construção da capela começou a ser discutida em 1870, mas em 1897, como as obras não haviam sido concluídas, a Câmara de Curitiba autorizou a destinação de verbas de seu orçamento.
Entre os anos de 1955 e 1956, “provavelmente na mesma época em que as obras de ampliação do terreno do cemitério eram executadas”, a capela foi demolida e deu lugar a um largo. Grassi acrescenta que outros melhoramentos, como a reestruturação da praça Padre João Sotto Maior, localizada em frente ao Cemitério Municipal São Francisco de Paula, e a restauração do portal de entrada foram realizados na primeira gestão do prefeito Rafael Greca, em 1994.
** Confira aqui as referências da matéria “Cemitério Municipal de Curitiba completa 170 anos de história”.
Mais uma reportagem do Nossa Memória, projeto de resgate da história da Câmara e da cidade de Curitiba, desembarca no CMC Podcasts. No próximo episódio do Curitibou?, que vai ao ar na manhã desta quinta-feira (5), o tema é o aniversário de 170 anos do Cemitério Municipal São Francisco de Paula. Referência no tema, a pesquisadora cemiterial Clarissa Grassi é a entrevistada das jornalistas Fernanda Foggiato e Michelle Stival. Grassi se dedica há 22 anos ao tema. Ela é autora de livros sobre a história do cemitério mais antigo de Curitiba e também a responsável pelas visitas guiadas ao São Francisco de Paula.
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