- Atualizado há 8 horas
Moram em Curitiba dois dos cerca de 25 mil expedicionários que saíram do Brasil para lutar na Itália, na 2ª Guerra Mundial – o conflito que teve a Europa como campo de batalha e acabou há 80 anos. Na época, a Curitiba que eles escolheram para viver era muito diferente: tinha praticamente metade dos bairros e uma população próxima dos 160 mil habitantes.
Um desses pracinhas, como são conhecidos os combatentes que ajudaram a derrotar o nazismo, é o catarinense João Trela, que mora no Tarumã. O outro, o gaúcho Joaquim Ignacio Goulart Mayer, vive no Órleans. Em comum, os dois guardam a idade aproximada, muitas lembranças na memória e nos álbuns de fotografias, além da alegria de morar na cidade que escolheram para viver.
Para receber as principais informações do dia pelo WhatsApp entre no grupo do Portal Nosso Dia clicando aqui
“No dia 8 de fevereiro, eu estava me lembrando, fez 80 anos que saímos do Brasil para nos juntarmos aos aliados”, começou a contar Joaquim Mayer, sem titubear, apesar dos 99 anos completados em novembro e de estar acamado. O ex-pracinha atuou como soldado, chegou a 2º tenente e fez parte da tropa de serviço – a equipe encarregada de conduzir e fazer escolta de prisioneiros. “Era a Polícia da FEB e só pegava na arma para defesa”, frisa. No entanto, fez parte do grupo envolvido na rendição da 148ª Divisão de Infantaria Alemã.
Joaquim lembra perfeitamente do trajeto desde Santa Maria, sua cidade natal, até o Rio de Janeiro. Foi da então capital da República que eles saíram, treinados e vacinados, rumo ao porto de Gênova, na Itália. “Saímos da minha cidade no dia 20 de dezembro de 1944 e passamos o Natal e o Ano Novo nos preparando para entrar em ação na Itália”, diz.
O ex-combatente frisa que foi para a Guerra como voluntário. “Antes de me apresentar à FEB, apesar de já ter 18 anos, pedi permissão à minha mãe e ela concedeu. Nunca me arrependi. Cumpri meu dever, fui patriota. Por isso, na Guerra, nunca tive medo nem vontade de voltar. Meu ideal era mesmo ir”, afirma Joaquim.
Foram quatro intensos meses se deslocando pelo interior da Itália e que deixaram marcas importantes no corpo e no coração do pracinha. Uma delas foi o disparo acidental da própria arma, que lhe custou alguns dias de baixa hospitalar, um dedo lesionado e pequenas cicatrizes de estilhaços pelo corpo. Outra, no braço direito, é a tatuagem desbotada de uma mesquita – símbolo da vitória do 4º Corpo do 5º Exército nos Montes Apeninos, e que virou emblema do grupamento. A terceira recordação vem do breve namoro com a jovem italiana Lina, de 16 anos, e que não pôde ir avante. “Sempre lembro dela”, diz Joaquim, que no curto período em que esteve na Itália conseguiu visitar Pompeia, o Coliseu e o Vaticano, onde seu grupo recebeu uma benção do papa Pio XII.
Nada mal para quem se define, naquela época, como “semianalfabeto” e que “escrevia muito mal”. “Nunca fui à escola e, o que aprendi, foi em casa, com minha mãe”, conta. Só mais tarde, já em Curitiba, é que veio a fazer um curso semelhante ao atual Educação de Jovens e Adultos (EJA). “Meu pai não teve educação formal, mas sempre foi muito curioso. Enquanto os outros iam para os bares, ele preferia aproveitar para aprender. Até hoje ele é assim”, diz o filho Carlos, com quem Joaquim mora desde que começou a ter dificuldades para se locomover, há cerca de 10 anos.
A chegada a Curitiba com a mulher, Noemia, e os nove filhos, é anterior à neve de 1975. “Estamos aqui há 51 anos, vindos de Ponta Grossa, um dos lugares para onde fui depois que voltei da Guerra”, conta ele, que não se atrapalha na hora de recordar o número de descendentes. “Tenho 21 netos e 17 bisnetos”, informa Joaquim, que define Curitiba como uma cidade boa e bem administrada. “Gosto muito de viver aqui”, resume.
Foi na capital paranaense que Joaquim ficou viúvo, depois de 56 anos de casamento, e se aposentou como carteiro. Isso depois de também ter tido profissões tão diferentes quanto servente de pedreiro, pedreiro, guarda civil e despachante do Detran.
Um pouco mais velho que Joaquim Mayer, o 3º Sargento João Trela vai completar 101 anos em junho. Além dos vários álbuns de fotografias e cartas trocadas na época da Guerra, um detalhe associa o ex-pracinha ao episódio histórico: o endereço do condomínio onde mora há 6 anos, acompanhado por um cuidador e a supervisão dos três filhos. É a Rua Monte Castelo, entre o Alto da XV e o Tarumã, assim denominada em homenagem a uma das batalhas em que as forças aliadas contra o nazismo foram bem-sucedidas, com a ajuda dos expedicionários brasileiros.
Da poltrona da sala onde costuma passar as tardes, João conta que servia voluntariamente o Exército quando foi chamado para se juntar à FEB. “Era setembro de 1944. Fomos até o Rio de Janeiro e, de lá, embarcamos no navio sem saber exatamente onde íamos aportar. Então rumamos para Livorno, fomos até Pisa e, de lá, para o campo de batalha”, lembra João.
Assim como Joaquim Mayer, João Trela também não pegou em armas. “Acho que por causa do estudo que eu tive, para os padrões da época, fiquei na retaguarda, dando suporte ao Comando”, relata. O catarinense de Três Barras, que chegou em Curitiba com 10 anos de idade, estudou no Ginásio Paranaense e, a seguir, formou-se Técnico em Contabilidade. Naquele tempo, muitos pracinhas sequer eram alfabetizados.
Em território italiano, também sujeito aos ataques do inimigo alemão, não lembra de ter medo. “Faz muito tempo e, além disso, eu era um jovem que foi para a Itália exatamente para aquilo: servir ao Brasil. Sou grato a Deus por estar vivo e muito honrado por ter servido ao Brasil”, argumenta.
De volta à Curitiba em que costumava andar a pé, de bonde e até de “carro de praça”, o táxi da época, João preferiu seguir a vida civil a permanecer no Exército, como permitia a condição de expedicionário. Decidiu ser “guarda-livros”, termo pelo qual se designavam, antigamente, os contabilistas. E foi graças à profissão escolhida que conheceu a esposa, Avany, com quem teve três filhos e viveu por 71 anos. “Eu dava assistência contábil e acabei atendendo a bombonière (loja de doces) da mãe dela, na Rua XV. Assim começou o nosso namoro”, conta. João se aposentou como auditor da Receita Federal.