- Atualizado há 3 anos
A cantora, pastora evangélica e ex-deputada federal Flordelis dos Santos de Souza, de 61 anos, foi condenada a 50 anos e 28 dias de prisão pelo assassinato do marido, o pastor Anderson do Carmo, ocorrido em 16 de junho de 2019 na garagem da casa em que a família morava, em Niterói, região metropolitana do Rio. O julgamento, iniciado às 9h da última segunda-feira, 7, acabou às 7h20 deste domingo, 13. Flordelis foi julgada pelo Tribunal do Júri, composto por sete jurados (três mulheres e quatro homens) sorteados entre cidadãos previamente alistados, sob o comando da juíza Nearis dos Santos Carvalho Arce, da 3ª Vara Criminal de Niterói.
Segundo o Ministério Público do Estado do Rio (MP-RJ), responsável pela acusação, Flordelis e familiares próximos dela estavam descontentes com a conduta do pastor, que gerenciava a carreira da pastora e cantora e administrava o dinheiro, e por isso decidiram matá-lo – primeiro tentaram fazer isso o envenenando, e por fim acabaram matando-o a tiros. A pastora sempre negou o crime.
Além de Flordelis, também foram julgados quatro familiares dela: Marzy Teixeira da Silva, filha adotiva de Flordelis, Simone dos Santos Rodrigues, filha biológica de Flordelis, Rayane dos Santos Oliveira, filha de Simone e neta de Flordelis, e André Luiz de Oliveira, filho adotivo de Flordelis. Só Simone foi condenada a 31 anos e 4 meses. Os demais foram absolvidos.
Com depoimentos de acusação e defesa de filhos biológicos, adotivos e afetivos, confrontos entre defesa e a juíza e uma narrativa rodrigueana marcada por acusações de abusos sexuais transformada em tese da defesa, o julgamento da ex-deputada e pastora evangélica Flordelis dos Santos de Souza, de 61 anos se estendeu por mais de uma semana.
Foi o terceiro júri sobre o assassinato do pastor Anderson do Carmo, que até então já tivera seis condenados- todos ligados, direta ou indiretamente, à extensa família’ de Flordelis. Familiares que testemunharam em defesa da ex-deputada relataram supostos abusos de Anderson contra Simone dos Santos, filha biológica da ex-deputada, e contra outras mulheres da casa.
Já as testemunhas da acusação negaram ter conhecimento de que Anderson cometesse abusos sexuais. Algumas apontaram o que consideraram indícios de que Flordelis queria matar o marido, inclusive tentando envenená-lo.
Em seu depoimento no Tribunal do Júri de Niterói – quando só aceitou responder a perguntas da defesa – Flordelis chorou continuamente e negou ter sido a mandante do assassinato ou de tentativas de envenenar o marido. Ela disse que o amava e que era dependente dele, inclusive para o sucesso do mandato como deputada federal. Apesar disso, a ex-deputada, seguindo a linha de defesa traçada por seus advogados, disse que Anderson inicialmente a agredia.
Depois, relatou, as agressões se davam durante as relações sexuais do casal. Segundo ela, o marido só conseguia chegar às “vias de fato” (orgasmo) se a machucasse. Depois, tratava-a com carinho, como se nada tivesse acontecido.
Responsável inicial pelas investigações do assassinato , a delegada da Polícia Civil Bárbara Lomba afirmou em depoimento que provas do crime teriam sido queimadas no quintal da casa onde a família morava, em Pendotiba, Niterói. A policial também contou que os celulares da vítima, da ex-parlamentar e de Flávio dos Santos, filho biológico da ex-parlamentar, autor dos disparos contra Anderson, desapareceram.A promotoria perguntou à ex-titular da especializada se Flordelis, ao depor na delegacia, teria relatado ter sido agredida pelo pastor. Segundo Bárbara, a ex-deputada disse que a relação com o marido era excelente e teria dito que nunca sofreu nenhum tipo de intimidação.
Outro delegado, Allan Duarte, que em 24 de janeiro de 2020 assumiu a investigação do caso, sucedendo a delegada Bárbara Lomba, afirmou em depoimento estar certo de que a pastora foi responsável pelo crime. Ele apontou o que considerou contradições nas afirmações de Flordelis e afirmou que a ex-deputada tentou envenenar o marido pelo menos seis vezes. O delegado elencou mensagens trocadas por ela com filhos, supostamente tratando do planejamento da morte do pastor.
O policial civil Tiago Vaz de Souza afirmou em depoimento que a família de Flordelis era “rachada em facções”. O agente diz ainda que Flordelis nunca relatou ter sido alvo de agressão ou abuso sexual durante os depoimentos do caso.
“Era uma família rachada, que tinha privilégios para um grupo. Uma família rachada em facções. Uma facção ajudou no planejamento da morte e outra facção denunciou a existência desse conluio”, afirmou o policial no segundo dia do julgamento.
A advogada Janira Rocha, que defendeu Flordelis, afirmou que os depoimentos das testemunhas confirmam a versão de que a pastora e suas filhas foram vítimas de abuso sexual e físico por parte de Anderson.
“Mulheres famosas, poderosas e ricas que sofreram abusos sexuais só muito tempo depois vieram a público dizer isso. A Flordelis não é uma exceção, as mulheres abusadas têm dificuldades, que são comprovadas, de poder expressar esse abuso”, disse.
A defesa da ex-deputada afirmou ainda que Simone dos Santos Rodrigues, filha biológica de Flordelis, foi a única responsável pela morte do pastor.
Luana Vedovi, nora de Flordelis, afirmou ainda no julgamento que Marzy estava convicta de que a morte de Anderson “resolveria todos os problemas da família”.
“Ela falou: ‘matar o Niel (apelido de Anderson) vai resolver o problema de todo mundo’. Marzy estava com a mente feita de que matar o Niel iria resolver os problemas da casa dela”, disse.
Logo após a morte do pastor Anderson, Luana e o marido, Wagner, teriam desconfiado da participação de Flordelis. Eles se lembraram da existência de uma mensagem com um plano para matá-lo, que teriam visto em um iPad, decidiram fotografar a prova.
Ela contou que ela e o marido decidiram procurar a delegacia após fotografarem o texto com o plano do assassinato.
Neta de Flordelis, Rebeca Vitória Rangel Silva contou em depoimento que Paula Neves Magalhães de Barros, amiga e braço direito da avó, simulou a coleta de depoimentos de testemunhas do processo para instruí-las a não acusar a ex-parlamentar. De acordo com Rebeca, Paula do Vôlei, como é conhecida, procurou os filhos e netos de Flordelis para submetê-los a perguntas.
“Ela sentava com a gente e simulava que ela era a delegada. Se a gente falasse algo sobre a Flordelis, ela dizia que não. Ela fazia a nossa cabeça para chegar na DH (Delegacia de Homicídios) e não acusar a Flordelis. Se eu falasse que a Flordelis era a mandante do crime, ela cortava”, afirmou.
A reportagem não conseguiu o contato de Paula do Vôlei para que comentasse as acusações.
Roberta dos Santos, filha adotiva da ex-parlamentar e de Anderson do Carmo, negou que a mãe ou uma das irmãs tenham sido alvo de abuso sexual por parte de Anderson do Carmo.
“Não existe abuso sexual. O Niel não era um abusador”, disse. “Quando me perguntam isso, me dá um embrulho no estômago. A forma como eles estão levando isso é um deboche com mulheres que realmente sofrem abuso sexual. Isso é uma afronta. O Niel respeitava. Ele não permitia que a gente andasse de biquíni, de short curto, porque tinha muito homem naquela casa. Abuso sexual eu nunca ouvi naquela casa. É uma casa grande, tem fofoca. Se tivesse, saberíamos.”
No quinto dia do julgamento, as sete últimas testemunhas de defesa da ré acusaram Anderson de assédio e abuso sexual contra filhas e netas afetivas, além de outras condutas reprováveis. Duas netas de Flordelis, filhas biológicas de Simone dos Santos Oliveira e André Luiz de Oliveira, que também são réus nesse mesmo processo – Lorrayne dos Santos Oliveira e Rafaela dos Santos Oliveira – fizeram as acusações mais duras contra a vítima.
Rafaela contou que, em uma noite durante um período de férias em 2018 ou 2019, estava deitada no quarto que dividia com a mãe e outros quatro familiares. Foi quando alguém entrou, sentou-se em seu colchão, aos seus pés, e começou a passar as mãos pelo seu corpo. As outras pessoas estavam no quarto. Aparentemente dormiam.
“Senti uma mão subindo pela coxa e não conseguia reagir. Quando abri o olho vi o Niel (apelido do pastor Anderson) de blusa regata branca sentado”, narrou a testemunha. “Ele subiu a mão pelas minhas coxas e introduziu o dedo, eu fechei a perna e virei para a parede.”
A irmã dela, Lorrayne, afirmou não ter sido vítima de abuso semelhante. Mas acusou o pastor de tentar leva-la a um motel, com o pretexto de almoçarem, em uma tarde em que estavam a caminho da igreja. Ela se recusou e não houve Edesdobramentos, segundo contou aos jurados.
Os embates entre os advogados de defesa da ex-deputada e a juíza Nearis dos Santos Carvalho Arce, da 3ª Vara Criminal de Niterói, responsável pela condução do Tribunal do Júri, escalaram durante a primeira semana de julgamento do assassinato do pastor Anderson do Carmo. Advogados chegaram a ameaçar abandonar o julgamento se uma jornalista citada pelo Ministério Público não fosse ouvida.
A profissional escreveu um livro em que diz que a advogada Janira Rocha convenceu mulheres da família de Flordelis a contar os supostos abusos de Anderson. Para os promotores, a defensora teria orientado testemunhas, o que é proibido por lei. A juíza negou o pedido de oitiva da jornalista e ameaçou multar em 15 salários mínimos cada advogado de defesa, pelo abandono. Após uma reunião em sala fechada à imprensa, houve acordo e o julgamento continuou.
Responsável por representar Flordelis, a advogada Janira Rocha afirmou que foi “amordaçada” e “censurada” pela magistrada por constantes interrupções e indeferimentos de questionamentos durante a oitava de testemunhas de defesa.
Os advogados de Flordelis defenderam por mais de um ano que a magistrada foi parcial. Pediram o afastamento da juíza do processo. Mas os desembargadores da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio rejeitaram a exceção de suspeição contra a magistrada.
“A alegada rispidez (…) não deve ser considerada para fazer surgir uma exceção de suspeição onde ela inexiste. Firmeza não deve ser confundida com falta de urbanidade, assim como instrução escorreita, respeitando-se prazos, procedimentos e horários, não se transmuda em constrangimento ilegal”, escreveu o desembargador relator Celso Ferreira Filho.
Em sua decisão, ele destacou que o magistrado não é parte do processo.
“As decisões do juízo não estão sujeitas a constante avaliação sob a perspectiva da imparcialidade. Isso, além de retardar e prejudicar a prestação jurisdicional, mostra-se censurável sobre todos os aspectos. Não houve, no decorrer da longa e cuidadosa instrução, qualquer insurgência processual grave (…). Opiniões divergentes e o debate de ideias opostas, deduzidas processualmente após a deflagração da ação penal, são inerentes à própria dialética do direito e do processo. São fatos aceitáveis”, afirmou.
O júri recém encerrado foi o terceiro a abordar a morte de Anderson do Carmo.
Em novembro de 2021, Flavio Rodrigues, filho biológico da ex-parlamentar, foi condenado como autor dos disparos , a 33 anos, dois meses e vinte dias de prisão por homicídio triplamente qualificado, porte ilegal de arma de fogo, uso de documento ideologicamente falso e associação criminosa armada. Já Lucas Cezar Santos Souza, filho adotivo acusado de comprar a arma do crime, foi sentenciado por homicídio triplamente qualificado, mas teve sua pena foi reduzida, porque colaborou com as investigações.
Já em abril de 2022, foram condenados quatro réus. Adriano dos Santos Rodrigues, filho biológico de Flordelis, foi sentenciado a quatro anos em regime semiaberto por uso de documento falso e associação criminosa armada. Marcos Siqueira Costa, ex-policial militar, e sua mulher Andrea Santos Maia, foram condenados respectivamente a cinco anos em regime fechado e quatro anos em regime semiaberto.O filho adotivo Carlos Ubiraci Francisco da Silva foi condenado por associação criminosa armada a dois anos, em regime inicialmente semiaberto.
O pastor Anderson do Carmo foi casado com Flordelis por 25 anos. Foi assassiado a tiros no dia 16 de junho de 2019, na garagem da casa onde morava com a família em Pendotiba, em Niterói, Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Segundo os laudos dos peritos, foram identificadas 30 perfurações de de arma de fogo no corpo.
Anderson chegou à casa de Flordelis ainda criança, recolhido por ela j com mais de 20 outras crianças abandonadas ou dispensadas pelas famílias. Conheceu Simone, filha biológica da mãe adotiva, e, já adolescente, começou um namoro com ela. Depois se separaram, e ele se casou com Flordelis – de quem foi filho afetivo, quase genro e marido, portanto. Anderson recebeu pelo menos 30 tiros na garagem da casa onde morava com a família, em Pendotiba, bairro de Niteroi.
O Ministério Público denunciou a ex-parlamentar e mais dez pessoas pelo assassinato. Na época, a pastora não teve sua prisão pedida por conta da imunidade parlamentar, que perdeu em agosto de 2021, quando foi cassada pelo plenário da Câmara dos Deputados. Depois que perdeu o mandato, Flordelis foi presa preventivamente.