- Atualizado há 6 meses
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Encontrada no litoral de São Paulo e no do Paraná, a espécie de minhoca do mar Naineris lanai tem características físicas que a permitem viver em um ambiente aquático quase sem oxigênio, em meio à lama densa do mangue. As brânquias, como a dos peixes, que a espécie usa para respirar, são maiores do que as de outros animais parecidos. Cílios grandes ao longo do corpo fino servem para empurrar a pouca água disponível em direção às brânquias, garantindo um suprimento de oxigênio mínimo. As informações são da UFPR.
Todo esse sistema garante que a minhoca de cerca de 25 centímetros de comprimento consiga sobreviver em um ambiente difícil para a maioria dos seres vivos.
Essas adaptações da espécie impressionaram o professor Paulo Lana, do Centro de Estudos do Mar (CEM) da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Estudioso de anelídeos marinhos há décadas, Lana orientou o pesquisador Ricardo Álvarez durante o doutorado na Pós-Graduação em Sistemas Costeiros e Oceânicos (PGSisCo) da UFPR. Foi Álvarez quem coletou as minhocas, ajoelhado na lama dos mangues da Ilha das Peças (PR) e da Praia do Araçá (SP), em 2021.
“A morfologia funcional era uma das paixões do Paulo”, conta Álvarez à Ciência UFPR. “Ele havia observado essas adaptações em outras espécies de minhocas do mar por ele descritas. Paulo sempre me incentivou a olhar as minhocas do mar além da morfologia, pensando na função delas no ambiente”.
Álvarez usa o verbo no passado para se referir a Lana porque o professor sênior do CEM UFPR faleceu no fim de junho de 2022, aos 66 anos. O inesperado do acontecimento pode ser inferido da biografia de Lana na plataforma Lattes, onde os cientistas brasileiros mantém os seus currículos acadêmicos. “Pretendo ficar ativo até 2023, orientando pós-graduandos, coautorando trabalhos de revisão e procurando influenciar as carreiras dos mais jovens”, escreveu.
A perda abalou também o universo acadêmico da biologia marinha, visto que, mesmo que sendo um crítico do formato hegemônico de produtividade científica, o professor era um pesquisador considerado do mais alto nível de produtividade pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), doutor pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da UFPR desde os anos 1980. Na época, estava orientando três doutorandos.
O biólogo Álvarez, hoje em pós-doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estava concluindo a sua tese de doutorado. O trabalho propõe uma reorganização da família Orbiniidae, a de vermes poliquetos (com múltiplas cerdas) que se alimentam de depósitos marinhos, com base no achado de duas novas espécies. Uma delas, a Naineris lanai, foi batizada em homenagem ao orientador que se encantou com ela. A descrição da minhoca do mar está em um artigo publicado na revista Zootaxa.
“Paulo era uma pessoa que sempre deu suporte aos seus alunos, foi bem paizão. Acreditava no potencial das pessoas, potencial que muitas vezes nós mesmos não conhecemos. Isso é importante quando você é aluno da pós, devido a que muitas vezes a gente tem descobertas legais, mas somos inseguros. É importante que alguém acredite na gente”, explica Álvarez.
O substituto na orientação da tese foi o professor Maikon Di Domenico, do CEM, orientado por Lana no mestrado e no doutorado, e depois colega de trabalho e de conversas longas sobre ciência e docência. “Paulo era especialmente dedicado e preocupado com o desenvolvimento acadêmico de cada aluno e gostava de usar abordagens específicas para cada um”, diz Di Domenico.
Também no Lattes Lana deixou indícios do seu bom humor e temperamento afetuoso. “Nos últimos anos da minha carreira como cientista e professor, abandonei a perspectiva da ciência incremental e produtivista e passei a provocar meus alunos, em todos os níveis de formação, a ousar mais e a correr riscos científicos, procurando ser mais originais e criativos”, explica.
“[Sou] um eterno curioso, sempre gostei muito de minhocas marinhas e de outros bichos, mas gosto muito mais de pessoas”.
No artigo em que descrevem a espécie Naineris lanai, Álvarez e a pesquisadora norueguesa Nataliya Budaeva, da Universidade de Bergen, que coorientou a pesquisa, ensaiam uma proposta de alterações no gênero Naineris, um dos mais comuns em espécies de minhoca do mar. Com a ajuda dos laboratórios noruegueses, a dupla confirmou também a presença da espécie Naineris setosa tanto no Brasil como no mar Mediterrâneo, e uma nova espécie do grupo no Oceano Pacífico, a que será descrita em estudos futuros.
Por sugestão do grupo de pesquisa, as espécies do gênero Naineris serão realocadas em outros dois gêneros. Consequentemente as espécies brasileiras pertencentes a Naineris terão que mudar de nome, segundo publicação científica que deve sair em breve.
As revisões taxonômicas — taxonomia é a ciência de classificar os seres vivos — têm sido mais constantes devido ao método de taxonomia molecular, no qual é analisado o DNA do animal e suas semelhanças e diferenças com o de outras espécies. Usando de detalhes moleculares, ou seja, dos trechos genéticos que se repetem em cada espécie, essa avaliação auxilia as avaliações físicas, que são aquelas adotadas por taxonomistas desde milênios antes de Cristo.
A taxonomia molecular impacta especialmente a reorganização de grupos com número grande de espécies, caso dos anelídeos marinhos.
“Vivenciamos um aumento recente no número de espécies de anelídeos, porque os métodos de taxonomia molecular permitem o delineamento das entidades dentro de complexos de espécies”, diz Di Domenico, que coordena o grupo de pesquisa da PPGSisCo.
As recém-descobertas espécies de minhocas do mar não estão sob ameaça de extinção. Mas elas cumprem um papel importante para os estudos biológicos, porque servem de indicadores da saúde de um ambiente. Ao habitarem locais que são continuamente pressionados pela presença humana, como mangues e praias, esses animais mostram, na sua presença ou ausência, a situação desses ecossistemas quanto à poluição e à presença de oxigênio na lama e na água.
Outro papel das minhocas marinhas é o de bioturbadoras. Isso quer dizer que, assim como as minhocas terrestres fazem na terra, elas reviram o sedimento onde vivem, fazendo a água com oxigênio e nutrientes chegar às camadas mais profundas do solo. “Isso é útil para os outros organismos que ali vivem”, explica Álvarez.
Pode não parecer à primeira vista, mas conhecer espécies é uma etapa fundamental da proteção à biodiversidade dos biomas.
“Essas descobertas são essenciais para a ciência. Atualmente estima-se que estamos perdendo espécies mais rapidamente que podemos descrevê-las. Esse é um dos grandes desafios na ciência da biodiversidade, especialmente no contexto de mudanças ambientais sem precedentes”, diz Di Domenico