
- Atualizado há 3 horas
Síndicos e advogados condominiais alertam: a briga da vez nos prédios é sobre carregadores de carros elétricos. Diante do aumento da circulação desses veículos no Brasil, cresce a demanda para adaptar os edifícios e também as dúvidas sobre conduzir o processo com segurança.
Alguns órgãos técnicos têm criado as primeiras recomendações sobre carregadores, mas não há uma lei que padronize os protocolos para todo o País. Nesse cenário, os conflitos nos condomínios têm resultado em destituição de síndico e até disputas na Justiça.
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O Brasil tem mais de 500 mil veículos elétricos, segundo a ABVE, associação do setor. Só na cidade de São Paulo, mais de 70 mil já foram comprados.
O jornalista Daniel Castro, 58 anos, assumiu como síndico do edifício onde mora, na Bela Vista, região central de São Paulo, em março. Na assembleia em que foi eleito, a então síndica do prédio também obteve aval para instalar um carregador para seu carro elétrico em sua vaga de garagem.
A vizinha arcaria com os custos e o serviço seria executado somente mediante Anotação de Responsabilidade Técnica (ART) de engenheiro eletricista.
Castro, porém, viu que a situação não era tão simples. “O prédio é de 1965. A estrutura elétrica é antiga. A garagem é subterrânea, apertada e difícil de manobrar. Quais normas precisamos seguir para a instalação segura? Nem os bombeiros decidiram sobre isso ainda”, diz.
Em abril de 2024, o Corpo de Bombeiros de São Paulo submeteu para consulta pública sugestões de diretrizes, que previam detector de incêndio, chuveiros automáticos, cinco metros de distância entre veículos, ou, então, parede corta-fogo separando o automóvel em recarga.
No documento, a corporação justificava a urgência da regulamentação “devido ao potencial risco de ignição das baterias de lítio, que podem aumentar consideravelmente a carga de incêndio”, e ressaltava que as chamas dos equipamentos “exigem grande volume de água para extinção”.
Mas, um ano e meio depois, o Corpo de Bombeiros paulista diz que “as regulamentações ainda estão em estudo técnico e não há definições oficiais finalizadas” — nem prazo para concluir. Apesar disso, reforça a obrigatoriedade de tomada exclusiva para cada carregador, adaptada ao dispositivo e instalada por engenheiro eletricista com ART.
Para Castro, a instituição é “omissa” pela ausência das orientações. Sem lei ou regra oficial para se basear, o então síndico diz ter enfrentado resistência dos vizinhos ao buscar protocolos de segurança.
O impasse se intensificou com laudos conflitantes. Uma análise técnica contratada pelo condomínio desaconselhou a instalação devido à infraestrutura elétrica existente. A modernização necessária custaria cerca de R$ 300 mil — valor que, na visão do síndico, deveria ser destinado a problemas mais urgentes.
“O prédio tem infiltração nas escadas. A caixa-d’água não fecha direito e entram mosquito e barata.” Os moradores interessados na tecnologia contrataram um segundo laudo, que chegou à conclusão oposta: a rede elétrica suportaria, com segurança, um carregador por apartamento.
Mesmo assim, Castro foi contrário. “Se houvesse incêndio, o prédio ruísse e alguém morresse, eu seria o responsável. Poderia ser processado ou preso. Prefiro ser deposto a correr esse risco.”
Sete meses após ser eleito, foi exatamente o que aconteceu. Ele perdeu o cargo — segundo os moradores, por descumprir decisão anterior da assembleia que autorizava o ponto de recarga.
A nova síndica, Cora Andraus, declara, em nota, que a destituição seguiu “estrita observância dos requisitos legais e transcorreu de forma responsável e democrática”. Afirma ainda que “eventual futura implantação [de carregadores elétricos] seguirá todas as normas vigentes e será acompanhada por engenheiro habilitado.”
A ausência de regulamentação tem levado disputas semelhantes aos tribunais. Há processos em São Paulo, Pernambuco e Mato Grosso.
Em Cuiabá, a autônoma Michelle de Sá Bozetti, de 37 anos, e sua família obtiveram na Justiça o direito de manter seu carregador, mas a síndica tenta reverter a decisão. Sete condôminos haviam instalado os equipamentos sem aprovação em assembleia.
Um laudo técnico concluiu que o sistema elétrico não comportava a demanda e determinou a remoção dos aparelhos. Seis apartamentos obedeceram. O sétimo, da família de Michelle, diz ter autorização do síndico anterior e se recusa.
“Eles cumpriram as regras, avisaram o síndico. Depois de mais de um ano, quando mudou de gestão, há esse questionamento?”, argumenta o advogado dos moradores desse apartamento, Carlos Eduardo Maluf Pereira.
Já o responsável pela defesa do condomínio, Luciano Rodrigues Dantas, defende que qualquer intervenção em área comum exige aprovação coletiva. “Como o carregador interfere na segurança e na capacidade elétrica de todos, deve passar pelo crivo da assembleia”, afirma.
A jornalista Bruna Machado, de 38 anos, também de São Paulo, buscou economia e praticidade, mas teve um contratempo. “Troquei de veículo porque gastava mais de R$ 1 mil por mês com combustível. Hoje gasto menos de R$ 200. Mas imaginei que poderia carregar em casa, à noite. Seria a maior facilidade”, conta.
O condomínio, no entanto, vetou a instalação. “Nem me deixaram levar um engenheiro para estudar a viabilidade. Sou obrigada a ir a shoppings ou supermercados para carregar o carro.”
Presidente da Comissão de Advocacia Condominial da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Rodrigo Karpat diz que a instalação de carregadores exige aprovação em assembleia e laudo de engenheiro eletricista.
“No Brasil, há um vácuo de legislação, que traz insegurança jurídica tremenda”, diz. Segundo ele, ainda não há jurisprudência consolidada. “Os processos são embrionários e discutem mais o rito de aprovação em assembleias do que o mérito do risco”, continua Karpat.
Em agosto, o Conselho Nacional de Comandantes-Gerais dos Corpos de Bombeiros Militares (LigaBom) publicou diretrizes sobre carregadores: incluir detector de incêndio, chuveiros automáticos e botão de desligamento de emergência sinalizado.
“A urgência desta atualização é corroborada por sinistros de grande magnitude, que demonstraram a rápida propagação de incêndios, culminando em danos extensivos e, em alguns casos, no colapso estrutural das edificações”, escreveu a entidade no documento.
Nesta semana, o Brasil teve o primeiro registro de incêndio de um veículo 100% elétrico: um BYD Dolphin em Santa Maria (RS). O carro estava sendo carregado em uma estrutura improvisada, que saía da sacada de um apartamento.
Para a LigaBom, esses episódios “expõem a vulnerabilidade das construções frente aos novos padrões de inflamabilidade veicular”. Entre 2018 e e este ano, o Estado de São Paulo registrou média anual de 25 acidentes envolvendo veículos elétricos e híbridos.
Karpat ressalta que as orientações da LigaBom não têm caráter obrigatório, mas devem servir de base para regulamentações estaduais — essas, sim, com força de lei. Ele observa que as exigências poderão ser incorporadas ao Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB), necessário para o pagamento de seguro, em caso de incêndio. Por ora, não há exigências a respeito dos carregadores no AVCB.
“A diretriz da LigaBom gerou pânico nos defensores de carros elétricos, por avaliarem que as exigências impossibilitam os pontos de recarga. Por outro lado, a instalação em condomínios é indiscriminada. Muitas empresas dão o carregador de brinde na compra do veículo e ele é montado inadvertidamente na garagem. Isso traz discórdia no condomínio, porque as pessoas querem saber quem paga a conta de energia, por mais que ela seja ínfima”, diz Karpat.
Presidente da Associação Brasileira do Veículo Elétrico, Ricardo Basto, afirma que o setor concorda com a maioria das recomendações da LigaBom, exceto a obrigatoriedade do chuveiro automático. “Entendemos que ainda não há maturidade na discussão sobre a efetividade de segurança deles, e até mesmo de avaliação de seu custo econômico”, diz.
Só o custo de instalação do carregador residencial varia de R$ 2 mil a R$ 3 mil, além do preço do equipamento (R$ 6 mil a R$ 8 mil). Já a conta de energia do equipamento é de, segundo Basto, cerca de 1/5 da despesa com combustível por um veículo de mesmo porte e autonomia.
Para Basto, os chuveiros ajudam a combater em caso de chamas, mas o que evita o fogo é uma instalação elétrica correta. “Quando feita com segurança, o risco é mínimo.”
A concessionária Enel, responsável pelo abastecimento de energia em São Paulo, informa que a instalação não exige aviso obrigatório às fornecedoras de eletricidade por se tratar de uso interno. “Porém, é recomendável informar a distribuidora caso o equipamento aumente significativamente o consumo, evitando sobrecarga e danos à rede interna”, informou, por nota.
A empresa ainda afirma que o usuário deve garantir que a instalação elétrica suporte a nova demanda. “Nos condomínios, também não há obrigatoriedade de registro, mas é indicado solicitar aumento de carga, principalmente em locais com vários pontos de recarga”, destaca.
Na semana passada, o Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea) também publicou orientações — sem caráter obrigatório — voltadas à instalação. O texto determina que o serviço deve ser realizado por engenheiro eletricista registrado, com ART, em circuito exclusivo, e com painel de desligamento de emergência. Recomenda ainda estudo de aumento de carga elétrica e, nos prédios existentes, apenas detector de incêndio e extintores — os chuveiros automáticos ficariam restritos a novas construções. As diretrizes foram elogiadas por Basto. “São normas de uma entidade respeitada, que ajudam a dar previsibilidade ao setor”, conclui.
O presidente do Confea, Vinicius Marchese, reforça: “A premissa básica é ter um profissional habilitado que se responsabilize por meio da ART. Se houver qualquer dúvida sobre a capacidade da rede, é preciso buscar orientação técnica”.